Foi o chefe mais amado da Nação

24 de agosto de 2020: 66 anos sem Getúlio Vargas

Getúlio Vargas e Villa Lobos.

Hoje, segunda-feira, 24 de agosto de 2020, completam-se 66 anos do suicídio do presidente Vargas. Como de costume, publicaremos a carta-testamento e a carta-despedida. E, como novidade, faremos, ao final sugestões de livros, documentário e entrevistas que discutem o significado da Era Vargas. Embora a contribuição de seu governo seja central para compreendermos o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a construção de uma civilização nos trópicos, nossa proposta consiste em pensarmos o período como objeto privilegiado para capturarmos os limites em que esbarram os projetos reformistas. Não se trata de um inventário de seu legado, mas de interpretar, no processo de formação econômica nacional, os limites com que seu governo se deparou. Inseridos na passagem do capitalismo competitivo para o monopolista, os governos de Vargas (1930-1945 e 1951-1954) revelam a peculiaridade do nosso capitalismo: para se reproduzir, moderniza-se o arcaico e “arcaiza-se” o moderno.

Do ponto de vista da formação econômica, a construção de uma economia nacional passava pela superação da economia colonial, compreendida não como resquício da história, mas como raiz dos nossos dilemas. Dentro da ordem, a superação do capitalismo dependente, em teoria, passaria pelo aprofundamento dos mecanismos de controle do Estado, suprimindo as debilidades do capital privado nacional, ou pela revolução socialista – na esteira da Revolução de 1917, as colônias e neocolônias só se emancipariam superando a ordem que lhes deu origem. A emancipação nacional, dentro da ordem, confunde-se com o enfrentamento das estruturas do capitalismo dependente pelas economias de passado colonial. Do ponto de vista econômico, essa luta esbarrava no caráter truncado de nosso desenvolvimento, incapaz de produzir um padrão de financiamento compatível com a escala necessária das estruturas econômicas modernas e de barganhar por transferências de tecnologia, à época concentradas nas grandes empresas e constituindo-se enquanto ferramenta de concorrência e de geopolítica. Depreende-se, desse quadro, que não estava colocada a superação radical da dependência: os graus de autonomia dependiam da amplitude do “convite” feito pelo polo ocidental, os EUA, ao desenvolvimento capitalista – o que nos distingue fundamentalmente do caso da Coreia do Sul. Teórico ou historicamente, o desenvolvimento autônomo, num nacionalismo radical, não estava colocado para os países dependentes. A opção por um “desenvolvimento prussiano” constituiu-se, nada menos, que em sonho – ou uma ilusão desenvolvimentista, diriam alguns.

Vargas compreendeu perfeitamente essas questões de seu tempo e buscou, alternativamente à solução socialista (cujas limitações não estão no nosso escopo), a todo momento, fortalecer o Estado nacional e barganhar com o imperialismo as condições de financiamento da industrialização em bases nacionais. Para além de uma discussão acerca do caráter direto ou indireto das medidas de recuperação da crise de 1929 sobre o processo de industrialização, importa observarmos que o encaminhamento dos bloqueios colocados pelas oligarquias regionais à reordenação da ordem econômica e social conquistada no Estado Novo permitiu que os conflitos de interesses fossem inseridos nas estruturas estatais, que organizavam o poder. A estrutura montada pelo governo (e com influência de setores da burguesa, para tranquilizarmos parte da historiografia que se dedicou a atenuar a incompetência histórica dessa classe em forjar uma economia moderna, mostrando as contribuições de suas lideranças nas decisões econômicas) no período do Estado Novo – Conselho Federal de Comércio Exterior, Coordenação de Mobilização Econômica, para ficarmos em dois casos -, combinada com a regulação sobre os fluxos de bens e de capitais, concorreu para a industrialização do país. O governo Vargas instituiu uma nova forma de relação e intersecção entre Estado, economia, sociedade, cultura e política que desmantelava a “vocação agrária” e encontrava, na empresa estatal, uma nova forma de impulsionar os saltos de modernização das estruturas de mercado. Foi dessa forma, com ampla intervenção coordenada por uma elite da burocracia, das Forças Armadas e do movimento modernista, seja pela política econômica, pela regulação, seja pela empresa estatal, que o país caminhava, já na década de 1940, para a segunda revolução industrial – a do aço e da eletricidade. Essas são as proporções (históricas, econômicas, sociais, políticas e simbólicas) da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), da Vale do Rio Doce e da Companhia Hidroelétrica do São Francisco.

Essa insuficiente consideração acerca do Estado Novo ajuda extrairmos um projeto de desenvolvimento nacional: as rupturas com o modelo primário-exportador e a nova institucionalidade, que mediava as relações entre Estado, economia, sociedade, cultura e política, constituíram-se como projeto político alternativo para intermediar a penetração da modernidade, de uma nova sociabilidade. Para parte da literatura, que identifica na Era Vargas a demagogia e o populismo, a inexistência de um plano preestabelecido de metas e objetivos bem delineados fortalecia o argumento do caráter conservador e imediatista do governo, preocupado em se conectar diretamente com as massas, atravessando as instituições políticas da democracia burguesa. Por outro lado, de um ponto de vista mais amplo, da penetração da modernidade na vida brasileira, é questionável representar Vargas a continuidade dos termos da República Velha (1889-1929). A economia do café, do algodão, do mate e do cacau passou a conhecer o aço, a luz elétrica e a produção industrial de bens de capital e bens de consumo, enquanto o monopólio sobre o comércio exterior, com centralização cambial, e a moratória da dívida externa davam a letra antiliberal.

Houve muitas resistências ao marcos regulatórios e a esses empreendimentos: Volta Redonda, a usina siderúrgica, chegou a ser considerada “grande demais”; a consolidação das leis do trabalho ficou restrita ao mundo urbano e aos trabalhos que ajudavam na “construção nacional” (excluindo uma massa de serviçais das classes altas e médias); os controles sobre os fluxos de mercadorias e capitais foram atacados, inclusive por setores industriais. Concebia-se um projeto nacional de desenvolvimento que, implicitamente, trouxe consigo uma determinada intervenção estatal, num sentido amplo: uma particular forma de articulação entre economia e Estado que fazia avançar a corrida pelo cathing-up tecnológico, superando as debilidades financeiras da burguesia brasileira. Dentro dessa forma particular, a empresa estatal mostrava que o setor público poderia ser eficiente na produção, assegurando a soberania nacional sobre a exploração de setores estratégicos. Demais, ficava claro que o controle sobre o câmbio e o crédito tornava-se instrumento indireto de intervenção, mas igualmente necessário para a modernização das estruturas de mercado local. Se essas medidas não constituíram um plano bem acabado, certamente as reações contrárias advogavam por uma alteração nos rumos que o país tomava sob égide do regionalismo paulista.

Não precisou passar muito tempo para que os destituídos de 1930 se reorganizassem e, diante das transformações observadas, selecionassem melhor os seus alvos. Os liberais brasileiros passaram a aceitar a “indústria natural”, mas não perdoaram o Estado interventor e regulador. A manutenção da ordem, que aqui se exprime na inserção da economia brasileira como mera produtora de bens tropicais e importadora de bens industriais, encontra-se na raiz do liberalismo econômico. Não por outra razão, o regime de câmbio e os órgãos de administração criados durante o Estado Novo foram esvaziados já em 1945, no governo provisório de José Linhares, e, alguns, encerrados pelo governo Dutra (1946-1950), resguardado pela nova Constituição de 1946. O Segundo Governo Vargas (1951-1954) inicia-se não só sob outro regime, a democracia, mas com seus instrumentos de administração reduzidos ao mínimo: daí a necessidade de uma Assessoria Econômica da Presidência, mas que funcionava na penúria, motivada pelo espírito do servidor público daspiano (ainda tínhamos o servidor público, antepassado do funcionário público e do concurseiro). Somam-se a essas “novidades” os desequilíbrios da economia e geopolítica da Guerra Fria, afetada por forte crise cambial e por agravamento das condições de vida proporcionado pelo aumento da inflação.

Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt

O Segundo Governo não perdeu tempo e, já na Mensagem de 1951, deu o tom de seu projeto de desenvolvimento, uma versão mais moderna e arrojada em relação ao que se pretendeu no primeiro período. Mas, sob outro regime político e sob o clima de Guerra Fria, o desafio da barganha com o imperialismo e o enquadramento da burguesia brasileira eram mais difíceis. As negociações com o Congresso e o alinhamento irredutível em determinados assuntos (como o intervencionismo na economia) com a política externa dos EUA criavam um novo ambiente para as negociações do projeto de desenvolvimento. Com o fim do governo Roosevelt, os termos dos EUA em relação aos demais países alteraram-se substancialmente. Dentro desta quadra, importa destacar a verdadeira saga de aprovação dos recursos a serem administrados pelo BNDE, então criado por sugestão da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos – e já colocado na Missão Cooke, no período anterior; a obstrução do projeto Eletrobrás e os cortes a que o projeto Petrobrás foi submetido. Do ponto de vista da regulação econômica, destacamos as disputas travadas pelos servidores da CEXIM na concessão das licenças para a importação, bem como a reação contrária à política de criação dos câmbios múltiplos por parte de todas as frações da burguesia brasileira. O projeto nacional de desenvolvimento e a intervenção estatal subjacente eram novamente derrotados na arena política, em que se encontra o centro das decisões sobre as transformações da economia. Daí a necessidade de avaliarmos sempre a constelação de classes que compreendem e cerceiam o Estado nacional para depois examinarmos a economia, o desenvolvimento e a industrialização.

Merecem, nesse aspecto, considerações mais aprofundadas o regime de câmbio e de remessas de lucros. Numa economia dependente, o projeto de desenvolvimento nacional precisava enfrentar uma questão central: a escassez de divisas, que exigia o controle sobre a sua utilização, garantindo a realização das mudanças estruturais, que permitiriam, em teoria, via diversificação das exportações, maior ingresso dessas divisas, num período subsequente, e, na prática, maior poder de fogo do Estado nacional para a barganha. Com a economia estabilizada do ponto de vista das contas externas, haveria mais segurança e bala na agulha tem o Estado e a própria burguesia para parir a sociedade moderna. O controle sobre as divisas tornou-se objeto de disputa entre as frações da burguesia entre si e, em relação ao Estado, os entraves recairiam sobre os critérios de seletividade e essencialidade das importações e remessas de capital. O Segundo Governo Vargas pretendeu controlar os fluxos de importação e exportação, canalizando as divisas geradas pela economia (basicamente, a economia do café) para a industrialização e, noutra frente, barganhar empréstimos, numa modalidade governo-governo (empréstimos públicos), e financiamentos necessários para ampliar a infra estrutura do mercado brasileiro – e, daí, falarmos em modificação das estruturas de mercado. Não haveria espaço, portanto, para a importação de bens de consumo nem para terceirizar a industrialização ao capital internacional. Daí, nessa frente, a adoção de restrições para a repatriação de capital, que, se liberadas, comprometiam o equilíbrio do balanço de pagamentos.

O Segundo Governo Vargas nos ensinou que, diante da opção fácil das importações de bens de consumo para o atendimento da demanda de consumo das classes abastadas e média e da terceirização da industrialização, com as empresas internacionais ingressando no mercado brasileiro e convertendo-se em polo dinâmico de um modelo de desenvolvimento baseado nos bens de consumo (em detrimento de bens de capital), a burguesia brasileira não hesita: em detrimento da soberania, prefere a Volkswagen no Brasil que a Volkswagen do Brasil; instrumentaliza o arcabouço intervencionista e regulador do Estado a favor da modernização dos bens de consumo; e realiza a importação dos bens de capital necessários, ainda que com tecnologia defasada. Os controles instituídos pela Lei 1.807 de janeiro de 1953 e pela Instrução 70 da SUMOC, que flexibilizavam o mercado cambial, mas sem perder os critérios de essencialidade instituídos pelo governo, sofreriam resistências justamente pela sua discricionariedade, definindo as trasações comerciais e de capital de interesse nacional e que se beneficiavam de um câmbio mais vantajoso. Em relação às remessas, especificamente, com a adoção de medidas retroativas (!!!) do Decreto 30.363 de 1952, sobre o cálculo dos lucros e das remessas, estabeleceram-se novos critérios para a apuração dos reinvestimentos, o que, praticamente, reduziu a base de cálculo dos investimentos realizados – e, por conseguinte, os lucros e capitais a serem remetidos. Todos esses elementos comoveram a opinião pública a favor do capital internacional e instituiu uma crise nas negociações dos empréstimos com os EUA, e o governo acabou recuando.

Tabela 1 – Investimentos estrangeiros no Brasil – 1947/54 (US$ milhões)
Tabela 2 – Taxas de câmbio sobre o regime de leilões (10/1953 – 08/1957) (Cr$/US$)
Quadro 1 – Categorias de importação criadas pela Instrução 70 de 1953.

Da tabela 1, podemos nos aproximar do significado do Decreto 30.363, que alterava a base de cálculo dos investimentos estrangeiros, desconsiderando os reinvestimentos. No entendimento do governo, o cálculo das remessas deveria considera o investimento novo realizado no país, ou seja, as remessas deveriam guardar alguma relação com os aportes. Nesse sentido, reinvestimentos, que seriam oriundos de lucros acumulados, à medida que não significavam novos aportes, gerariam distorções. Numa palavra, o Decreto 30.363 atacava o problema central do desequilíbrio externo em economias dependentes: a realização dos ganhos e a repatriação dos lucros não se dão na mesma moeda, sendo necessária a disponibilidade de dólares para garantir a repatriação de ganhos das filiais que operam em cruzeiros. Importa notar que, no período do Estado Novo, o governo buscou realizar auditorias na contabilidade das empresas estrangeiras, suspeitando haver irregularidades na contabilização de investimentos e reinvestimentos que subcontabilizavam os ganhos e inflavam os aportes – o que ficou comprovado, posteriormente, no caso das operadoras de energia elétrica no Rio Grande do Sul e justificaram a estatização. O Decreto, nesse sentido, buscava enfrentar a questão colocada no período anterior. Como podemos observar nos dados, os reinvestimentos têm peso considerável, se considerados os investimentos líquidos ou totais, constituindo-se como a base do financiamento das empresas estrangeiras. A questão não era, portanto, restringir sua atuação, mas limitar as repatriações que não eram resultados de novas inversões.

Já os dados da Tabela 2 e do Quadro 1 revelam os critérios de essencialidade e de discricionariedade pretendidos pelo Segundo Governo Vargas. Como podemos observar, as desvalorizações, em relação ao mercado oficial, alcançavam nada menos que 320% para as categorias de bens menos essenciais, o que significava o encarecimento de bens importados, ou seja, uma proteção ao mercado interno. Algumas importações continuavam a ser realizadas pelo mercado oficial, mas já era possível notar uma diversificação considerável de bens nas categorias criadas. Do ponto de vista da utilização das divisas, essas categorias significavam uma diferenciação, por exemplo, para os importadores de veículos (Categoria 3) e os importadores de equipamentos elétricos (Categoria 1), numa clara sinalização pelo fomento da indústria pesada. Para as exportações, o objetivo era a sua diversificação, posto que a pauta ainda era essencialmente composta pelo café. Demais, destacamos que a regulação impedia que os ingressos de capital ganhassem com essas diferenciações cambiais (ingressando num câmbio mais barato e repatriando num câmbio mais caro – sob o ponto de vista da empresa estrangeira), embora houvesse condições especiais, na entrada e na saída, para os capitais considerados de interesse nacional. Todos esses fatores constituem a modificação qualitativa da intervenção estatal, o que torna o Segundo Governo Vargas não apenas uma continuação do primeiro, mas um aprofundamento radical no fortalecimento da industrialização sob bases nacionais: em relação ao mercado de câmbio, o controle e a criação de algumas faixas de bens, durante o Estado Novo, metamorfoseou-se num complexo e amplo regime cambial que, articulado ao projeto nacional de desenvolvimento, pretendia organizar a industrialização pesada e soberana, restringindo a participação do capital estrangeiro em setores estratégicos e garantindo a utilização de divisas escassas para os projetos de infra estrutura e produção de insumos básicos da economia.

O fim do SGV, que, neste dia 24, completa 66 anos, é a derrota deste projeto nacional desenvolvimento, voltado para a estruturação da economia nacional na indústria pesada e em fundamentos que atenuassem o caráter dependente. Do nosso ponto de vista, o mais curioso foi a união da burguesia brasileira, da fração industrial à comercial, contra o projeto: mesmo longe de constituir-se como projeto revolucionário, isto é, de superação da ordem, a estratégia varguista de desenvolvimento foi colocada contra a parede pela burguesia brasileira, que não endossou as medidas cambiais e de controle sobre os fluxos de bens e capitais. Dessa decisão política de não sustentar o Segundo Governo Vargas, depreende-se que nossa burguesia opera como artífice do capital internacional, que vinculava a adoção de medidas econômicas “corretas” à liberação dos empréstimos. Nesse sentido, capital internacional distingue-se de capital estrangeiro, pois o modo como opera é o que determina a sua natureza – e não o local de origem. Importa observar que existiam restrições de ordem geopolítica, mas, principalmente, de ordem interna, com a burguesia brasileira optando internamente pela terceirização da industrialização brasileira.

Do ponto de vista interpretativo, os conflitos entre o projeto varguista de desenvolvimento e a burguesia brasileira colocam-se não apenas nos termos da luta entre o capital e o trabalho, mas também no tipo de intervencionismo econômico. Noutras palavras, tão importante quanto a política salarial do período (que determinou um aumento de 100% no salário mínimo), a política cambial revela um embate entre a burguesia brasileira e as formas de atuação do Estado nacional. A Era Vargas coloca objetos (a política econômica, a regulação, os projetos Petrobrás, Eletrobrás, BNDE etc.) privilegiados para capturarmos os limites da burguesia brasileira em empreender politicamente um projeto nacional de desenvolvimento. Num período anterior ao golpe de 1964, encontramos a opção por uma industrialização desenraizada das necessidades de reprodução da sociedade brasileira sob o capitalismo, voltada aos interesses imediatos, que concorrem para soluções de menor resistência. A burguesia brasileira não abandona o seu ventre mercantil, apesar do desenvolvimento do capital industrial e financeiro nos trópicos. Ela combina arcaico com moderno e moderno com arcaico. Trata-se de uma burguesia particular, cuja revolução, consumada em 1964, assume caráter de contrarrevolução, mantendo o caráter dependente:

Há burguesias e burguesias. O preconceito está em pretender-se que uma mesma explicação vale para as diversas situações criadas pela “expansão do capitalismo no mundo moderno”. Certas burguesias não podem ser instrumentais, ao mesmo tempo, para a “transformação capitalista” e a “revolução nacional e democrática”. O que quer dizer que a Revolução Burguesa pode transcender à transformação capitalista ou circunscrever-se a ela […] (Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil).

Não seria estranho, nessa quadra, interpretarmos a industrialização como mais um grande negócio, em que a burguesa brasileira atua como sócia do empreendimento, tomando o controle do planejamento estatal, a fim de reorientar a revolução econômica em curso, e calibrando-o para um modelo associado-dependente que objetivava nada menos que a modernização dos padrões de consumo. Numa palavra, não nos parece equivocado inserir a industrialização como o último milagre brasileiro, na célebre expressão de Sérgio Buarque de Holanda:

Teremos também nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão de milagres há de continuar assim através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República. (Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso).

Para além do significado deste 24 de agosto de 2020, importa destacar que a compreensão de nosso processo histórico depende da combinação de sínteses dos clássicos de interpretação do Brasil com os estudos especializados, que dispõe de farta documentação e esclarece sobre eventos relevantes na compreensão do todo. O trânsito entre esses dois tipos de trabalho se impõe para pensarmos a nossa trajetória e os problemas com que nos defrontamos. Por isso, não basta apenas recordarmos um período central de nossa história, mas devemos ir além, resgatando as interpretações de “longa duração”, que nos ensinam a não subestimar a força do velho em se atualizar e a não superestimar a força do novo em se impor, liquidando o passado. No centenário de nascimento de Celso Furtado e Florestan Fernandes, a discussão a respeito dos dilemas da formação, tão escancarados na Era Vargas, é uma discussão sobre o futuro.

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Livros, entrevistas e documentários

Agosto. Rubem Fonseca.
Artes da política. Diálogo com Amaral Peixoto. Aspácia Camargo.
Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Maria da Conceição Tavares.
A Era Vargas. José Augusto Ribeiro.
A Era Vargas. Pedro Paulo Bastos e Pedro Dutra Fonseca (Orgs.).
Getúlio. Lira Neto.
Getúlio Vargas, meu pai. Alzira Vargas do Amaral Peixoto.
A invenção do trabalhismo. Ângela de Castro Gomes.
Petróleo, energia elétrica e siderurgia. Jesus Soares Pereira.
A política econômica do Segundo Governo Vargas (1951-1954). Sérgio Besserman Vianna.
Quarup. Antônio Callado.
Regionalismo e centralização política. Partidos e Constituinte nos anos 30. Ângela de Castro Gomes.
Rumos e metamorfoses. Sônia Draibe.
Tancredo fala de Getúlio. Valentina Lima.
Vargas: capitalismo em construção. Pedro Dutra Fonseca.
Vargas e a crise dos anos 50. Ângela de Castro Gomes (Org.).

Getúlio (filme de João Jardim).
Imagens do Estado Novo (documentário de Eduardo Escorel).
O longo amanhecer (documentário de José Mariani).
Sonho intenso (documentário de José Mariani).
Getúlio Vargas (documentário de Ana Carolina Teixeira Soares).
Vargas – 50 anos depois (palestras ministradas no IE/UNICAMP).
Entrevista com Celina Vargas (CPDOC/FGV).
Entrevista com José Augusto Ribeiro (Linha Direta).

Dr. Getúlio
(Chico Buarque e Edu Lobo)

Foi o chefe mais amado da nação
Desde o sucesso da revolução
Liderando os liberais
Foi o pai dos mais humildes brasileiros
Lutando contra grupos financeiros
E altos interesses internacionais
Deu início a um tempo de transformações
Guiado pelo anseio de justiça
E de liberdade social
E depois de compelido a se afastar
Voltou pelos braços do povo
Em campanha triunfal

Abram alas que Gegê vai passar
Olha a evolução da história
Abram alas pra Gegê desfilar
Na memória popular

Foi o chefe mais amado da nação
A nós ele entregou seu coração
Que não largaremos mais
Não, pois nossos corações hão de ser nossos
A terra, o nosso sangue, os nossos poços
O petróleo é nosso, os nossos carnavais
Sim, puniu os traidores com o perdão
E encheu de brios todo o nosso povo
Povo que a ninguém será servil
E partindo nos deixou uma lição
A Pátria, afinal, ficar livre
Ou morrer pelo Brasil

Abram alas que Gegê vai passar
Olha a evolução da história
Abram alas pra Gegê desfilar
Na memória popular

https://www.youtube.com/watch?v=7QruCDHGpIs

Carta Testamento

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.
Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre,não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos.
Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.
Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém.
Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.

Getúlio Vargas.

Carta Despedida

Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte.
Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.
A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.
Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país contra a minha pessoa.
Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da Pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para, com mais fúria, perseguirem-me e humilharem. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes.
Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue de um inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus.
Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade.
A resposta do povo virá mais tarde…

Getúlio Vargas.

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Texto atualizado em 25/08/2020

Discurso do Presidente Getúlio Vargas em 1o de maio de 1951

Reproduzimos o discurso feito pelo Presidente Vargas no primeiro 1o de maio de seu governo, que voltou pelas urnas.

Diferentemente de muitos canais que se dizem de esquerda, os Boêmios, como sabem o raro leitor e a rara leitora, sempre se preocuparam com a manutenção da memória do campo progressista nacional publicando, em dias simbólicos como o de hoje, discursos e momentos importantes. Importante ressaltar que o Portal Disparada (portaldisparada.com.br) recorrentemente publica textos a respeito do nosso processo de formação nacional. Um alento!

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Trabalhadores do Brasil,

Depois de quase 6 anos de afastamento, durante os quais nunca me saíram do pensamento a imagem e a lembrança do grato e longo convívio que mantive convosco, eis-me outra vez aqui ao vosso lado, para falar com a familiaridade amiga de outros tempos, e para dizer que voltei a fim de defender os interesses mais legítimos do povo, e promover as medidas indispensáveis ao bem estar dos trabalhadores.

Esta festa de 1º de maio tem para mim e para vós, uma expressão simbólica: é o primeiro dia de encontro entre os trabalhadores e o novo governo. E é com profunda emoção que retorno ao vosso convívio nesse ambiente de regojizo e festa nacional. Em que nos revemos uns aos outros a céu aberto e em que o governo fala ao povo de amigo para amigo na linguagem simples, leal e fraca que sempre lhes falei.

Nas horas de glória e de triunfo, assim como nas de sofrimento e de perseguições, os trabalhadores foram sempre fiéis, desinteressados e valorosos. E posso repetir hoje, de coração, o que mais de uma vez proclamei: os trabalhadores nunca me decepcionaram. Nunca se aproximaram de mim para pleitear interesses particulares ou favores pessoais. Pleitearam sempre para a coletividade a que pertencem, pelo reconhecimento dos seus direitos, pela melhoria das suas condições de vida, pelas reivindicações da classe e pelo bem-estar dos seus semelhantes.

Quando me retirei da vida pública e passei anos esquecido pelos que me festejavam no poder, vós, trabalhadores, nunca me esquecestes; e ali, na minha solidão, não me chegava apenas o eco distante dos vossos anseios e dos vossos direitos conspurcados, mas também o apelo dos vossos corações e a imagem dos vossos rostos cansados da labuta quotidiana, voltados para mim, num gesto comovedor de esperança e de saudade.

Aqui estou novamente ao vosso lado, e quero dar-vos a certeza de que, hoje como ontem, estarei convosco. E é convosco que pretendo reconstruir o Brasil de amanhã. As urnas de 3 de outubro, em que os sufrágios do povo me reconduziram ao poder, têm uma significação decisiva na vida brasileira. Nelas não ficou apenas evidenciado o desejo e a capacidade do povo de nosso país de participar direta e ativamente no governo; foi também a primeira vez na história do Brasil em que o povo escolheu verdadeiramente o seu presidente, em meio à pluralidade de candidatos e alheio a todas as influências políticas regionais, municipais ou mesmo partidárias.

Porque eu não fui estritamente um candidato de partido: fui um candidato do povo, um candidato dos trabalhadores. Governarei, portanto, com esse povo que me elegeu e envidarei sempre todos os esforços para lhe proporcionar a maior soma possível de conforto, segurança, e bem-estar.

Renovação nacional

Quero dizer-vos, todavia, que a obra gigantesca de renovação que o meu governo está começando a empreender não pode ser levada a bom termo sem o apoio dos trabalhadores e a sua cooperação quotidiana e decidida. Nestes primeiros 90 dias de administração, já pude fazer um balanço das dificuldades e obstáculos que daqui e dali se estão levantando contra a ação governamental. E vim hoje à vossa presença, neste ambiente de festa, sem as apreensões e os receios da reação policial como nos dias passados, para vos falar com a franqueza habitual e vos aconselhar o melhor caminho para a satisfação das vossas mais justas aspirações.

Ouço o clamor dos vossos apelos mais prementes; calam-me fundo na alma o desamparo, a miséria, a carestia da vida, os salários baixos, o dinheiro que não chega para as necessidades mais inadiáveis, a luta contra a doença, o desespero dos desvalidos da fortuna e as reivindicações da maioria do povo, que vive na esperança de melhores dias. É profundo, sincero e incansável o meu esforço para atender a esses reclamos e achar solução para essas dificuldades que vos afligem.

Leis contra a exploração

Mas, com a lealdade que vos acostumastes a esperar de mim, venho dizer que, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementos concretos de ação imediata para a defesa da economia do povo. É preciso, pois, que o povo se organize não só para defender os seus próprios interesses, mas também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à realização dos seus propósitos. Por isso, escolhi este dia e este momento do nosso primeiro encontro festivo para vos fazer um apelo.

Preciso de vós, trabalhadores do Brasil, meus amigos, meus companheiros de uma longa jornada; preciso de vós tanto quanto precisais de mim. Preciso da vossa união; preciso que vos organizeis solidamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e coeso ao lado do governo para que este possa dispor de toda a força de que necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso da vossa união para lutar contra os sabotadores, para que eu não fique prisioneiro dos interesses dos especuladores e dos gananciosos, em prejuízo dos interesses do povo. Preciso do vosso apoio coletivo, estratificado e consolidado na organização dos sindicatos, para que os meus propósitos não se esterilizem e a sinceridade com que me empenho em resolver os nossos problemas não seja colhida de surpresa e desarmada pela onda reacionária dos interesses egoístas, que, de todos os lados, tentam impedir a livre ação do meu governo.

Sindicalização

Chegou, por isso mesmo, a hora de o governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. As autoridades não poderão cercear a vossa liberdade nem usar de pressão ou de coação. O sindicato é a vossa arma de luta, a vossa fortaleza defensiva, o vosso instrumento de ação política.

Na hora presente, nenhum governo poderá subsistir, ou dispor de força eficiente para as suas realizações sociais, se não contar com o apoio das organizações operárias. É através dessas organizações, sindicatos ou cooperativas, que as classes mais numerosas da nação podem influir nos governos, orientar a administração pública na defesa dos interesses populares.

Auguro para a nossa pátria a época venturosa em que os sindicatos obreiros não serão apenas instrumentos de ação política e de defesa profissional, mas também terão a sua clínica para atender à saúde dos seus associados, as suas cooperativas para vender gêneros e mercadorias a preço de custo, escolas para elevar o nível das massas, órgãos jurídicos para defender os direitos individuais e sociais dos seus afiliados, caixas de empréstimo e financiamento para aquisição de casa própria, lugares de recreação após a labuta diária, sítios de cura e repouso para restauração das energias fatigadas; enfim, uma integração coletiva de vontades e interesses assegurando a todos e a cada um o emprego, o salário adequado, o bem-estar geral e a participação gradativa e proporcional nos rendimentos, frutos e benefícios da riqueza comum.

Para atender a esses objetivos, bem como para a luta contra a carestia da vida e os especuladores, e nos ingentes esforços pela elevação dos salários e a conquista do bem-estar social, é preciso que os trabalhadores e o povo em geral se organizem em volta do governo como um grande bloco, forte e coeso. Assim será possível levar avante o vasto programa de recuperação econômica e nacional que o meu governo pretende realizar. E é também esta a única maneira eficiente de o povo defender-se, para não ser explorado, e, como força de opinião organizada, ajudar o governo a lutar contra os elementos negativos da sociedade e contra os que não colaboram, os que prejudicam, contra os autores das fraudes, os sabotadores, os exploradores do povo e seus advogados, ostensivos ou disfarçados.

Melhor distribuição

As classes produtoras, que realmente contribuem para a grandeza e prosperidade nacional, o comerciante honesto, o industrial operoso e equitativo, o agricultor que fecunda a terra, estes não têm razão para temores nem para inquietações descabidas. Jamais devem recear a força do povo os que trabalham com o povo e para o povo. O que a lei não protege nem tolera é o abuso, a especulação desenfreada, a usura, o crime, a iniquidade, a ganância de todas as castas de favoritos e de todos os tipos de traficantes, que corvejam sobre a miséria alheia, mercadejam com a fome de seus semelhantes e dão até a alma ao diabo para acumular riquezas, à custa do suor, da angústia e do sacrifício da maioria da população. O que é insuportável é que dentro da sociedade, onde tudo deve ser harmonia, equidade e cooperação para o bem comum, uns reservem para si todos os benefícios e outros carreguem apenas o fardo das privações e dos sofrimentos. Queiram ou não queiram ouvir-me os inimigos do povo, continuarei proclamando em voz alta que não é possível manter a sociedade dividida em zonas de miséria e zonas de abundância; em que uns dispõem do supérfluo e a outros falta o indispensável para a subsistência; em que uns acumulam para si o mais que podem e outros carecem de roupa, de lar e de pão; em que uns padecem a fome e outros especulam com a fome. É justo que o trabalhador tenha um salário razoável, adequado ao seu padrão de vida, e que dê para sustentar a família, educar os filhos, pagar a casa e tratar-se nas doenças sem precisar de favores nem da caridade pública. É justo que a lei lhe faculte os meios de atingir esses objetivos e que o Estado defenda e garanta a execução de um programa dessa natureza.

A esse programa, que se iniciou no Brasil com a legislação trabalhista elaborada pelo meu governo, mas que ainda está longe de ser concluído, tenho dedicado toda a minha vida pública. Sempre contastes comigo, trabalhadores, para realizá-lo paulatinamente, à medida que as contingências o foram permitindo. De hoje em diante, porém, e agora mais do que nunca, sou eu que preciso contar convosco. Não apenas com o apoio constante, desinteressado e amigo que sempre me destes, mas também com a força da vossa organização coletiva, com os instrumentos de ação dos vossos sindicatos e com o prestígio da opinião pública que conseguistes consolidar pela inteligência dos vossos líderes profissionais e dos representantes escolhidos pelo vosso sufrágio.

Nas classes trabalhadoras organizadas, participando realmente do governo através dos sindicatos, cooperando diretamente com ele, é que poderei achar o sistema de defesa de que necessito para levar avante a obra renovadora do meu governo. Quero encontrar em vós, trabalhadores, nos vossos órgãos de classe solidamente organizados, os amigos verdadeiros e independentes que hão de sempre dizer-me a verdade sobre as vossas necessidades, sem falseá-la, sem adulterá-la, como o fazem muitos que a mim se dirigem com o velado propósito de legitimar as suas pretensões egoísticas, em detrimento dos interesses do povo.

Quero encontrar na vossa força coletiva organizada os elementos de ação que ainda me faltam para combater os grupos de exploradores responsáveis pela carestia da vida e pela desvalorização do vosso dinheiro.

Quero achar, na sinceridade dos vossos apelos congregados em torno dos vossos sindicatos, o alimento capaz de nutrir a sinceridade com que eu próprio me empenho, na defesa dos vossos direitos e dos vossos legítimos interesses.

Não basta, porém, a sindicalização das classes trabalhadoras: ela deve ser completada pela sadia organização das cooperativas do consumo. Já me referi a isto em discurso anterior e creio que nunca será demais insistir nas vantagens e benefícios do cooperativismo associado a uma boa organização sindical.

Fundo sindical

Devo lembrar que o meu governo achou o fundo sindical desvirtuado dos seus fins, utilizado para as manobras políticas mais inescrupulosas. Medidas já foram tomadas para moralizar essa aplicação; e a Divisão de Organização e Assistência Sindical tem efetuado rigorosos e intensivos exames nos processos de previsão orçamentária a fim de evitar a dispersão e o desperdício na aplicação das rendas sindicais.

Ensino

As cartilhas escolares, que o Ministério da Educação lançou em milhões de exemplares e cuja distribuição iniciei aqui num ato simbólico, representam o primeiro passo para a obra de instrução e difusão populares que o meu governo empreendeu com a decretação da gratuidade do ensino para que não faltem aos brasileiros, sem exceções ou discriminações, as facilidades e as oportunidades do aprimoramento cultural e do aperfeiçoamento profissional.

Proteção ao trabalhador rural

Medida de grande relevância, que é um dos pontos fundamentais do atual programa governamental, é a extensão dos benefícios da legislação trabalhista ao trabalhador rural, principalmente no que diz respeito à assistência médico-social, moradia e educação dos filhos, salário mínimo, direito à indenização e estabilidade no emprego. Conta o governo, para este fim, com a colaboração de agricultores e pecuaristas, a serem igualmente beneficiados com essas providências. A reforma dos órgãos mantidos pelo Imposto Sindical também deverá ser feita em futuro próximo, já se notando atividade proveitosa num dos seus setores – o do encaminhamento de desempregados, até há pouco tempo inoperante, conforme se vê das listas de convocação publicadas pela imprensa. O trabalho ora concluído está pronto para receber as últimas modificações.

Casa própria

A casa própria para o trabalhador constitui uma das finalidades essenciais que determinaram a criação das organizações securitárias, e este ponto deve estar presente no espírito dos seus administradores. Por isso, determinou o governo aos institutos a aplicação de fundos na edificação de residências para os seus contribuintes, empenhando-se igualmente a Caixa Econômica num novo plano de construção de vilas operárias.

Com o esforço conjugado dos institutos, da prefeitura e das Caixas Econômicas, poderemos construir logo, num primeiro plano de realizações imediatas, cerca de 30 mil casas baratas para a moradia dos trabalhadores do Distrito Federal. Sucessivamente, irão sendo atendidos outros centros populosos dos vários estados da Federação, à medida que se forem tornando mais urgentes e imperiosas as necessidades.

Salário mínimo

Outra providência já determinada pelo meu governo é o aumento do salário mínimo dos trabalhadores em todo o território nacional, aumento que nunca será menor de 50% e que, em certos casos, para determinadas regiões e gêneros de trabalho, poderá elevar-se a duas ou três vezes mais o salário mínimo atual. Os estudos nesse sentido já estão em andamento no Ministério do Trabalho, e a fixação definitiva dos novos níveis de salário mínimo deverá ficar pronta até fins de setembro do corrente ano.

Grandemente prejudicial aos interesses das classes trabalhadoras era a orientação que vinha sendo seguida em vários Institutos de Aposentadorias e Pensões. Com poucas exceções, esses institutos tiveram o seu patrimônio dilapidado em vultosas inversões de capital, com objetivos inteiramente estranhos às suas finalidades. Já foram ordenadas sindicâncias para apurar responsabilidades, bem como medidas enérgicas para mais eficiente fiscalização das várias Caixas de Aposentadorias e Pensões. As irregularidades encontradas serão oportunamente levadas ao conhecimento público. E esta será a resposta do meu governo aos sabotadores e traficantes, que descontaram nos encargos públicos as comissões pagas em troca de favores eleitorais.

Não faço campanha contra pessoas. Critico apenas os métodos, processos e atos prejudiciais à coletividade brasileira. Isso, infelizmente, é o que simulam não entender os cúmplices da improbidade administrativa quando atacam as medidas moralizadoras da minha administração. Haja vista o que se disse e propalou a respeito do meu último discurso do dia 7 de abril.

Crise econômica

Fez-se abstenção dos atos concretos que relatei, da desorganização financeira do país e do estado de coisas encontrado pelo meu governo, que naquele discurso pretendi revelar ao povo. De tudo o que eu expus, os meus agressores destacaram apenas a frase final, para explorá-la e deturpá-la de várias maneiras, como se eu tivesse dito algo de surpreendente e estranho quando falei na miséria do povo, na carestia da vida, na atividade nociva dos açambarcadores de todos os matizes. Disseram que o meu discurso era um convite à desordem e à reação popular. Entretanto, não anunciei senão verdades sabidas, focalizando problemas conhecidos de todos: a crise econômica em que nos debatemos, a inquietação das massas, provocada pelo aumento desproporcional do custo da vida e pelo monopólio dos gêneros de primeira necessidade. Isto não é apenas um mal brasileiro: é uma crise universal.

Mal-estar social

Ainda recentemente, na Conferência de Washington, os delegados latino-americanos frisaram que a principal causa da crise política do continente era o mal-estar social produzido pelos baixos padrões de vida, pela insegurança econômica das populações. O próprio Plano Marshall, de ajuda aos países europeus, não visa senão elevar os níveis de vida, assegurar emprego para todos, firmar as condições de estabilidade do trabalhador, para que não medrem as ideias dissolventes no seio das sociedades. E que é o tão falado Ponto IV senão um remédio para que cessem os males e perigos da anarquia social?

Precisam saber de uma vez por todas os reacionários intransigentes que estamos vivendo uma fase de democracia econômica e social em que as necessidades básicas de subsistência das populações obreiras e do povo em geral devem ser atendidas de forma preferencial e decisiva. Na Europa, na Ásia, como nos países da América, as dificuldades econômicas são germes constantes da inquietação social, e é preciso remediá-las em tempo oportuno para evitar que o povo se agite e faça justiça pelas próprias mãos.

Advertência necessária

Quando fiz esta advertência no meu último discurso, julguei estar lembrando um fato conhecido por todos, focalizando um problema que, nos nossos dias, é de todas as nações e de todos os continentes. Não o entenderam assim, porém, os meus adversários e os inimigos do povo, que me apoia. Estranharam a minha advertência quando eu julgava estar repetindo coisas comezinhas e quando eu apenas reproduzia a advertência que, no mundo inteiro, fazem hoje os estadistas conscientes, zelosos da paz social e sinceramente preocupados em impedir que os seus países se afoguem no mar revolto das rebeliões das massas. Meus propósitos foram sempre o equilíbrio social, a harmonia dos interesses entre classes produtoras e classes trabalhadoras, a concórdia política e a justiça na distribuição dos bens e das riquezas da coletividade. Não preciso incitar o povo à reação nem açular à violência porque o povo sempre sabe quando deve reagir e contra quem deve fazê-lo.

Houve quem dissesse, há dias, que, nestes primeiros três meses de novo governo, o povo já não esconde a sua decepção e o seu acabrunhamento.

Mas os que falam assim não conhecem o povo e muito se enganam sobre a solidez dos vínculos que unem ao povo o meu governo. Pretendem falar em nome do povo sem saírem das quatro paredes onde vivem refestelados em cômodas poltronas e onde não chegam as vozes livres das multidões, longe, bem longe do ambiente palpitante de trabalho e de sacrifícios daqueles que lutam pelo pão quotidiano. Só podem falar em nome do povo os que buscam o seu contato, os que não se arreceiam de se defrontar com ele ao ar livre, em espaços abertos, à luz do sol, dando conta dos seus atos e debatendo lealmente os problemas populares – como neste imenso e inconfundível espetáculo que estamos presenciando.

Trabalhadores do Brasil, não me elegi sob a bandeira exclusiva de um partido, e sim por um movimento empolgante e irresistível das massas populares. Não me foram buscar na reclusão para que viesse fazer mera substituição de pessoas, ou simples mudanças de quadros administrativos.

A minha eleição teve significado muito maior e muito mais profundo: porque o povo me acompanha na esperança de que o meu governo possa edificar uma nova era de verdadeira democracia social e econômica, e não apenas para emprestar o seu apoio e sua solidariedade a uma democracia meramente política, que desconhece a igualdade social.

Percam a ilusão os que pretendem separar-me do povo, ou separá-lo de mim. Juntos estamos e juntos estaremos sempre, na alegria e no sofrimento, nos dias de festa, como o de hoje, e nas horas de dor e sacrifício. E juntos haveremos de reconstruir um Brasil melhor, onde haja mais segurança econômica, mais justiça social, melhores padrões de vida e um clima novo de prosperidade e bem-estar para este bom e generoso povo brasileiro.

***

Abram alas que Gegê vai passar
Olha a evolução da história
Abram alas pra Gegê desfilar
Na memória popular

(Trecho de Dr. Getúlio, de Chico Buarque).

24/08/2019

Getúlio Vargas quando da extração de petróleo

Neste 24 de agosto de 2019 completaram-se 65 anos do suicídio do maior estadista da história deste país, fundador e artífice do Estado Moderno brasileiro e inspirador deste blog, Getúlio Vargas. Sintomático foi nenhuma homenagem digna de nota nos veículos tradicionais de imprensa, que se esmeram de informar as pessoas e ter compromisso com o país. Num país em que seu povo pouco conhece a sua história (ou não seria a história do país a história de seu povo ?), pouco se falou e se fala do significado de 24 de agosto de 1954.

Pensando alto com um amigo, nós nos lembramos da Petrobrás, Eletrobrás, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, Código de Águas, Código de Minas, Consolidação das Leis do Trabalho, Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico (e Social, hoje), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesquisa de Nível Superior como símbolos de um tempo em que o governo se organizava em torno de um projeto e lutava pautado pelo reformismo. Como ser diferente ? Chegamos à conclusão de que a esquerda brasileira tem grave problema com o varguismo porque não conseguir (ainda) aprender com os seus erros e com os seus acerto. Hoje, com efeito, parou de discutir o Estado.

Um outro amigo, poucos dias antes do dia 24 de agosto, comentava Impressionante o peso histórico de uma pessoa. Terminando aqui de preparar o curso de História do Brasil II me deparo com a seguinte situação: O antivarguismo brasileiro teve muitas nuances e residencias. O acadêmico intelectual encontrou residência e pousada na crítica Uspiana-fefelechiana esquerdista libertária. Dorme lá até hj. Na política ensaiou sua entrada no Governo Collor. Foi bradado como bandeira nos anos FHC, mas sobreviveu. No sindicalismo, o antivarguismo veio à baila com o novo sindicalismo liberal do ABC paulista de fins dos anos 1970. Curiosamente foram esses últimos personagens que tiveram de engolir a seco e tentar no comando do Estado Brasileiro,ou da parte em que a classe dominante permitiu comandar, reviver suas políticas. E infelizmente mais uma vez o Varguismo sofre sua última ofensiva brasileira. Sobreviverá? A conferir.

Com o amigo e Professor, exploramos mais a questão da esquerda e o varguismo. Apoiado num 1848 que nunca existiu, o pensamento progressista de viés marxista (e proximidades) preferiu ignorar as tentativas de reforma e defender arduamente a revolução. Estado ? Guichê de negócios da burguesia e comandado, em última instância, pelo imperialismo. E olha que este ainda é o setor minoritário. A grande maioria ainda aposta em saídas com a burguesia; alguns, inclusive, encontraram uma burguesia interna. A questão que fica é aonde estavam ou o que aprenderam com 1964 – e, no limite, 1954.

Sabemos que a desinformação e o distanciamento do povo da história é parte do projeto, que criou um país para 25, quiçá 30, milhões de pessoas, relegando o resto – 180 milhões – aos descaminhos da dependência externa e do subdesenvolvimento. O que não sabíamos é que boa parte da intelectualidade, hoje, ainda fica perplexa com a truculência, o entreguismo da nossa burguesia.

Memorial Getúlio Vargas no Rio de Janeiro

Por essas e outras, relembrar (e lamentar) o 24 de agosto de 1954 se faz necessário. Conhecer e aprender com ele para continuarmos o projeto da descolonização, a verdadeira revolução brasileira, congelada no tempo, mas ainda atualíssima.

Em tempo: em 22 de agosto de 2019 se completaram 43 anos do assassinato de outro presidente e estadista brasileiros, Juscelino Kubitschek, o JK. Morto pela ditadura civil-militar, JK encaminhou os limites impostos ao Segundo Governo Vargas e delimitou um corte no desenvolvimento capitalista no Brasil, que passava a se organizar muito próximo à empresa estrangeira. Essas diferenças, porém, não diminuem o estadista que foi nem suas contribuições para o desenvolvimento do país.

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, os dois maiores estadistas da história do Brasil