Pitaco da semana: a carta de FHC

A carta de Fernando Henrique Cardoso (FHC), publicada integralmente pela FOLHA no último dia 20, revela certa prudência do presidente diante de uma nova retunbante derrota de seu partido no pleito democrático. Por trás da união partidária que se preocupe com o “povo e a Nação” existe a omissão da responsabilidade de seu partido pela crise. Diferentemente do senador Jereissati, FHC preferiu reinvidicar a unidade em torno do resultado do pleito omitindo que fora seu partido que inicialmente não aceitou o resultado das urnas de 2014 e se propôs a “sangrar o governo”. Demais – e daí a importância dos vídeos recentes do Planalto – preferiu se esquecer a colaboração no governo pós-impeachment. Não é segredo para ninguém que o projeto do PSDB é o contido na “Ponte para o Futuro” nem que os senadores Serra e Nunes Ferreira participaram ativamente do governo – para não falarmos da nomeação do ministro Alexandre de Moraes.

A abertura à instabilidade institucional do período 2015 – 2017 cobra hoje o seu preço, revelando-se na passagem “ganhe quem ganhar, o povo terá decidido soberanamente o seu vencedor e ponto final”. Reconhece-se que o respeito ao resultado eleitoral bem como o convívio democrático das “diferenças” precisam ser restabelecidos, mas não se credita à posição do PSDB, derrotado novamente, na participação do quadro. Ao se voltar para a crise atual salientando o desastre econômico “herdado”, FHC isenta a participação tucana na elaboração e execução da Ponte para o Futuro e não questiona os impactos sociais decorrentes de uma renovação na austeridade como solução do problema econômico (fiscal e externo).

O convite à união, porém, revela que a sensatez tenha batido à porta do presidente. À medida que a candidatura de Bolsonaro ganha mais adeptos após o ataque e que a candidatura de Alckmin não decola (como era de se esperar), a união a nível partidário entre tucanos e petistas está colocada. É difícil que as aproximações paridárias convertam-se em participações no governo, visto que, à revelia do que se afirma em posições mais à esquerda, há substanciais diferenças entre os dois progrmas de governo. Do lado de Haddad, nos lembremos que a vitória política é o que interessa nessa corrida e tanto melhor se vier acompanhada da vitória eleitoral. Por isso, não é de se esperar que a união em segundo turno esteja circunscrita ao pleito. Além disso, como Haddad e Ciro estão com mais chances de irem ao segundo turno, o PSDB e demais partidos adeptos a união é que irão se submeter ao campo progressista e não o contrário. A evidência é que a sinalização de união saiu das hostes tucanas e não petistas ou pedetistas, ou seja, a preocupação em torno dessa união só poderia ter saído em quem está fora da disputa.

A aposta na democracia, porém, parece descartar as fragilidades das instituições brasileiras, do verdadeiro acampamento sobre o qual se apoia a República, ainda mais suscetível ao desmanche depois da operação Lava-Jato. Não devamos esquecer que o momento pede instransigência por parte da burguesia brasileira no ajuste neocolonial, reforçando a verdadeira natureza da nossa economia e expondo os problemas da formação econômica incompleta. Por isso, o resultado do pleito será efetivamente aceito se houver o compromisso com o ajuste por parte do vencedor. Haddad promete tratar todas as questões sem tabu, mas também afirma que o povo não vai pagar a conta da crise sozinho. Caso sua candidatura vá para o segundo turno, teremos a “prova dos nove” das instituições brasileiras, uma vez que num possível governo Haddad o projeto neocolonial não será amplamente executado.

O cenário que se desenha semenas antes das eleições é de polarização entre os “republicanos” e os tiranos, em que se definirá os rumos da institucionalidade democrática formalmente restabelecida em 1988. Historicamente, as rupturas institucionais nos acometem de 30 em 30 anos aproximadamente (Democracia em 1889, Revolução de 1930, Estado Novo em 1937, Democracia em 1945, Tentativas de golpes em 1954, 1956, 1961, Ditadura em 1964, Constituinte em 1988 e Golpe de 2016). Em 05 de outubro, a mutilada Constituição completa 30 anos e veremos se sobreviverá, sinalizando uma ruptura no processo histórico brasileiro, ou se padecerá, mostrando a continuidade. Nossa perspectiva é de vitória do campo progressista e progressiva escalada de um novo golpe novamente sob a prerrogativa de colocar a casa em ordem. Na boa tradição dos economistas, estamos apenas projetando o passado no futuro.

Pitaco da Semana: 200 anos em algumas horas

A imagem do nosso pitaco mostra a tentativa desesperada de salvação do passado. O fogo do museu nacional é o mesmo que ilumina o projeto da “ponte para o futuro”. O futuro que nunca chega, que se aproximara em meados do século XX, esquecido depois da década de 1980 e redescoberto na passagem do governo FHC ao Lula – vide a capa de Economist com o Cristo decolando. O adeus do futuro ao país do futuro de Chico de Oliveira nos parece presente.

Desde 2015 a opção pelo ajuste fiscal abriu espaço político, econômico e social para o projeto neocolonial que pretendeu resgatar 20 anos em 2. Na arena política, a opção pelo ajuste após a saída corajosa, surpreendente e apertada do pleito de 2014 enfraqueceu as bases do governo e atiçou a sanha daqueles que desde 2003 tentam voltar ao governo. Economicamente a austeridade se mostrou novamente um fracasso retunbante e um olhar atento para os países europeus e mesmo para a economia mundial na passagem do século XIX para o XX mostram inequivocamente que os pressupostos econômicos do ajuste foram superados pela complexidade do sistema econômico – desenvolvimento da produção, crédito, comércio exterior etc. Resgatar as mesmas ideias um século depois é irresponsável e um equívoco grave . Já na arena social, a ascensão dos de baixo, a parca ascensão dos do meio e a subida dos de cima conturbava a convivência em aeroportos, estádios de futebol, praias, parques e espaços públicos. As bases modernas de convívio, em crise, foram colocadas em cheque porque ainda não superamos os 300 anos de escravidão, fazendo da subserviência irrestrita e das relações pessoais e de afeto o mote da sociabilidade no “novo país”.

Vivemos desde então a deterioração de qualquer resquício de civilidade e a ascesão da barbárie encarnadas no projeto político que sempre se contrapôs – com variações, é verdade – à modernização nacional e à criação de suas bases, como o Estado nacional e o sistema econômico nacional. Não nos custa lembrar aqui que fora o Estado que conduziu a modernização enquadrando os clãs regionais e construindo as bases de organização social e de produção material da sociedade moderna. Não por outra razão o ataque principal do grupo que emergiu do estelionato eleitoral se volta ao desmonte do Estado, restringindo sua capacidade de gasto, e ao desmonte da estrutura econômica nacional, provendo a venda de ativos, terras, empresas inclusive para empresas estatais de outros países. Em uma palavra, não é estranho que os ataques impliquem o último guardião da civilidade desde o golpe de 1964, a Constituição de 1988. O projeto neocolonial é, assim, o proejto do atraso.

O significado do incêncio que acometeu o Museu Nacional nesta semana não pode escapar a esse movimento mais geral de construção na nacionalidade em meio ao atraso que nunca é enterrado: uma independência “naquelas”, a última abolição e a República do senhor-cidadão. Não interessa ao projeto neocolonial e seus grupos a construção da Nação. Apagar-lhe o passado é, por isso, um projeto político. Daí podermos colocar os incêndios do Instituto Butantã, do museu da língua portuguesa – para ficarmos nos mais recentes. Por trás do “descaso” e dos “cúmplices” se faz necessário notar a existência de um projeto político que desde 2015 encontrou terreno fértil para voltar ao governo e exercer seu poder autocraticamente. Apontar os culpados sem problematizarmos a questão em relação ao ajuste neocolonial serve, portanto, de pouca valia.

 

Pitaco da semana: o retorno de Dirceu

O retorno de José Dirceu às hostes petistas causou reboliços na grande mídia desde segunda-feira. As reações, tanto quanto a seu retorno quanto ao livro que será lançado, já indicam que o “lado de lá” está temeroso com o retorno do “homem forte” do governo Lula e, em alguma medida, o principal articulador do “PT brando”, conhecido na figura do “Lula paz e amor”. No país, causa espanto como os movimentos e lideranças que se opõem ao atraso ganham espaço nas discussões e nos jornais mesmo quando derrotados e presos. Não custa lembrar que só por nossas bandas é que o anticomunismo é algo muito mais real e enraizado na sociedade que a sua razão de ser, o comunismo.

Como já argumentamos aqui, qualquer decisão referente à operação deve extrapolar os sentidos jurídicos e técnicos das decisões e encontrar no movimento da política sua explicação e seu sentido. Assim, de nada adiantam os inúmeros artigos e análises que discutem, por exemplo, as diferenças entre essa decisão e a que mantém Lula preso. Antes, como Lula continua preso, o objetivo é excluir qualquer possibilidade de interrupção do processo de ajuste neocolonial, em risco porque, até agora, o atraso ainda não fez decolar o seu candidato. Daí o risco à democracia, porque da última vez que os endinheirados perderam dentro “do jogo”, houve rompimento da ordem institucional e uma ditadura de 21 anos.

Antes de tudo, cabe perguntar em que medida José Dirceu é uma figura relevante no cenário político atual. Em entrevista concedida à FOLHA, Dirceu estava em liberdade e poderia voltar à cadeia, o que de fato aconteceu e hoje, por decisão judicial, pode ficar em liberdade enquanto o seu processo não seguir por todas as instâncias. Nesta entrevista, porém, o ministro revela o seu profundo conhecimento sobre o Brasil e, ao estabelecer uma perspectiva mais ampla de análise (estranha aos “colonistas” de hoje), defende que, apesar dos erros do PT, o seu lado na história é “o lado do povo, do Brasil”. Com seu diagnóstico, discurso e já provada experiência no governo, Zé Dirceu restaura, ao menos na oposição, o temor pelo retorno do partido ao governo o que, pelo o que temos interpretado, é inconcebível hoje.

Segundo o ministro, a batalha política e midiática em torno da prisão de Lula foi ganha pelo campo progressista. A resistência à prisão até o último momento, a ida ao sindicato dos metalúrgicos etc. carregam simbolicamente a imagem da injustiça e da luta, fundamentais no e para o imaginário social de um líder. O discurso da injustiça e da perseguição ganhou concretude ao ser transmitido “corpo-a-corpo” pela grande mídia – este que vos escreve acompanhou tudo pela GloboNews. A grande vantagem que o campo progressista tem em relação à oposição conservadora é o seu profundo conhecimento do país, sabendo como tocar e alcançar as pessoas (não à toa levou as quatro últimas eleições). E eles não apredem a lição: recentemente, num pacato domingo, outra bola foi erguida para consolidar a perseguição política em torno de Lula e sumariamente cortada pelo campo conservador (ver o Pitcado da semana “preso ou livre?”).

Na busca por separar os “erros que cometeu” dos erros do partido no governo, Dirceu acredita que sua condenação foi política, demonstrando que, no Brasil, as forças da ordem são poderosas e atravessam as instituições. A garantia da ordem, qualquer que seja, pela transposição de instituições e ritos burocráticos se adequa aos interesses em curso. Da Independência até a Nova República, esse expediente resultou numa série de mau entendidos, como a democracia brasileira. “Concluo que na verdade eu fui condenado por razões políticas. Eu não fui condenado pelas consultorias que prestei”, admitindo o seu erro (das consultorias) e expondo as razões de sua condenação.

Com essa perspectiva, Dirceu dá uma verdadeira aula de interpretação do momento em que vivemos. É sintomático que o seu entendimento sobre as lutas sociais no Brasil, que se polariza abertamente no campo conservador e progressista desde Getúlio, em 1930, apareça quando a questão que lhe foi feita envolvia o mote do conservador envergonhado, a corrupção. Quando questionado sobre os desvios para o financimento de campanha, Dirceu desvia a resposta para o que realmente interessa:

Nós temos que denunciar o que fizeram conosco, e não foi por causa de nossos erros. O legado do Lula, o nascente estado de bem-estar social que ele consolidou, está sendo todo desmontado. Estão desfazendo a era Lula como quiseram desfazer a era Getúlio. Eu faço o balanço histórico: estamos do lado certo e o saldo de tudo o que fizemos é fantástico. Eu vou dizer uma coisa para você: a Igreja Católica Apostólica Romana tem uma história de crimes contra a humanidade. Não vou nem falar das Cruzadas ou da Inquisição. Se eu for olhar para ela, vou mandar prender todos os padres e bispos porque a pedofilia é generalizada. Ou não é? Mas é a Igreja Católica Apostólica Romana. A vida é assim. O mundo é assim. O PT cometeu erros? Muitos. Mas tem uma coisa: o lado do PT na história, o nosso lado, é o lado do povo, do Brasil.

Ao mesmo tempo que revela sua perspectiva de interpretação do atual momento, Dirceu comete (ainda que parcialmente) o mesmo deslize que muitos do campo progressista: comparar o período Lula ao período Vargas ou, de maneira mais abrangente, a “República Populista” (1946-1964) – que, como o raro leitor e a rara leitora sabem, não aconselhamos. Talvez aqui esteja a fragilidade, porque se de maneira geral o movimento do campo conservador é sufocar a esquerda as condições em que isso se dá hoje e se deu à época eram muito diferentes, muito menos favoráveis (Guerra Fria, etc.). Trata-se, porém, de uma comparação melhor mediada, porque não se afirma uma equivalência entre a “era Lula” e a “era Vargas” mas, antes, coloca-se o campo conservador em oposição a esses períodos. Daí ser um diagnóstico correto e embasado que, ao final, aponta tanto para a tomada de consciência do desmonte e contra-ataque do campo progressista ante o avanço dos conservadores quanto para o vazio de propostas deste setor para a sociedade: está cada vez mais claro, desde 2015, que as reformas empreendidas não entregam os resultados esperados (emprego, renda e melhores serviços) e que o programa conservador não expõe seus objetivos mas, antes, se posiciona contrário aos programas “dos corruptos”.

Sem poder defender as reformas do governo ilegítimo e, muito menos, sua continuidade, o setor conservador se apresenta como o “contrário” de Lula. É revelador que o ministro Henrique Meirelles busque se apropriar da sua indicação no primeiro governo Lula para angariar votos e que o senador Álvaro Dias diga que está do lado certo (numa foto com o juiz Sérgio Moro). Alguns articulistas perceberam que talvez fosse mais sensato, quando do impeachment, propor ideias e planos à mera contraposição do que estava aí. Ao saírem em defesa pela deposição da presidenta Dilma com a imagem dela e de Lula, os movimentos acabaram por sacramentar a polarização que identifica em Lula e no PT a oposição ao atual governo – de pior avaliação da história. A maior vantagem, portanto, do campo progressista é conhecer o Brasil e sua sociedade, sem reduzi-lo ao horizonte “puro” e de “capitalismo sem classe” das classes-médias.

De qualquer forma e diante desse diagnóstico, o retorno de Dirceu ao jogo político já resultou em diversas matérias e reportagens que mostram antes o temor em relação ao seu potencial de mobilização de um campo aparentemente desunido. Nem o livro a ser lançado de memórias escapou às críticas. A confirmação da impugnação de Lula pelo TSE torna imperiosa a construção do “novo poste” que, ao que tudo indica, é Haddad. Não haveria hora melhor para o homem-forte de Lula estar de volta à batalha.

Por fim, seguimos na esperança de que a leitura de Dirceu esteja mesmo correta. Os últimos acontecimentos somados aos movimentos da sociedade brasileira desde a Revolução de 1930 não revelam que o país esteja se modernizando à revelia ou “enquadrando” o atraso; antes, que a acomodação e a combinação, naquilo que o prof. Chico de Oliveira denominou o Ornitorrinco, entre o atraso e o moderno seguem fortalecidas e que, no momento, as forças do atraso estão se fazendo mais presentes, pois o capitalismo vive outra crise, tornando imperioso o controle interno sobre a base econômica e social nacionais. Sem vacilações ou hesitações.

“Eu tenho confiança de que o fio da história do Brasil não é o fio as forças de direita. O fio da história do Brasil é o fio que nós representamos”.